Eletrovocalidades by Nucleo Musica Nova

Eletrovocalidade: uma prática criativa que tem por base a mobilização da voz, da palavra, do corpo e dos dispositivos eletrônicos. Assim como o conceito de vocalidade nos remete aos estudos de oralidade e escrita, à poesia e às figuras de linguagem, quando proferimos eletrovocalidade, expandimos um pouco mais essas ideias, agora no contato com um aparato maquinal contemporâneo. Este arcabouço de poesia vocal e da musicalidade histórica ocidental proveniente da voz, emerge atualmente aliado às máquinas sonoras e magnéticas. Neste sentido, a prática eletrovocal revela um corpus de obras em que o corpo vocal é tensionado por tecnologias, produzindo subjetividades vocais híbridas e expandindo os limites da expressividade musical.

Porém, para além de uma técnica ou gênero musical, a eletrovocalidade pode ser compreendida como um campo de tensão poética e política, no que tange à presença e papel das mulheres – especialmente da voz das mulheres – na história da música eletroacústica. Essa história evidencia relações de gênero assimétricas e está duplamente marcada por apagamentos sistemáticos das mulheres, seja pela falta da presença feminina dentro do universo da composição, mas também pelo acesso restrito aos dispositivos tecnológicos e às técnicas de engenharia sonora.

O campo da música eletroacústica carece de esforços sistemáticos de documentação, difusão e valorização das contribuições de mulheres, seja como compositoras, intérpretes ou co-autoras. O estúdio de música eletroacústica se mantém como um ambiente pouco acolhedor, levando-as, inúmeras vezes, a trajetórias atípicas: muitas mulheres são autodidatas, outras entram na composição pelas portas de outras artes, outras precisam criar se esquivando de obstáculos. Umas insistem pelos espaços de expressão e difusão das suas obras, enquanto outras inventam as suas próprias redes profissionais. Desses caminhos singulares, nascem também estéticas singulares, linguagens próprias marcadas não só pela inventividade artística dessas criadoras, mas também pela resiliência das mesmas.

Desta forma, este álbum explora as perspectivas poética e ética da eletrovocalidade, observando-as através das práticas femininas. A partir da criação eletroacústica feita por mulheres compositoras e performer-criadoras, esse disco explora o conceito de eletrovocal, ao veicular variadas propostas de exploração da voz através do uso diferenciado de tecnologias sonoras de edição, mixagem, processamento e síntese sonora. Ouvimos aqui a voz falada, cantada, recitada, dissecada, fragmentada, expandida. O fonema como material sonoro. A boca como instrumento musical ou proposição artística. A palavra como ruído. A conversa como ritmo ou como textura. A eletrovocalidade como reivindicação do direito à expressão das vozes dessas e de outras mulheres.

Esse disco apresenta 17 obras de artistas provenientes de diferentes países (Brasil, Argentina e Colômbia) e gerações com abordagens estéticas e técnicas tão diversas quanto expressivas. Embora o disco traga um panorama de artistas recentes, estão presentes aqui duas precursoras da música eletroacústica na América Latina. Veiculamos, in memorian, “A-jur-amô” (1978) de Vania Dantas Leite, e “Circles et Surfaces” (2012), de Elsa Justel. Agradecemos ao Prof. Alexandre Fenerich, que mediou a liberação da obra de Leite, através do projeto de pesquisa “Coleção de Música Experimental e Eletroacústica Carioca - Unirio/Faperj”.

Mais do que um registro fonográfico, este álbum se propõe como gesto de ética, memória e criação ao repensar a tecnologia como território no qual é urgente realizar um processo de singularização, autonomia e liberdade. Que estas vozes possam reverberar em múltiplas escutas e inspirar outras práticas de expressão, outras pedagogias sobre a música atual, sua produção e modos de existência.

Flora Holderbaum & Thais Montanari

Music research group from the State University of Paraná (Brazil)

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